Imagine a seguinte cena: um carro me ultrapassa em alta velocidade, enquanto no o céu, um urubu desfruta de um passeio tranqüilo. Meus olhos vão acompanhando o vôo da ave, até que me flagro totalmente desconectado da direção. Num segundo, volto a me concentrar em minha tarefa original: dirigir com segurança e, em última instância, chegar a meu destino são e salvo. Registro, então, a distração em um gravador, acessório escolhido para a experiência de hoje, à qual batizei de “motorista de olho em si mesmo”. Nesse experimento, convido também minha mulher, Ana – crítica implacável de minha performance ao volante –, a comentar meus pontos fracos. Seu problema principal”, ela dispara, “é que você parece não 3 car suficientemente atento à estrada a ponto de deixar os passageiros à vontade. Se vê alguma coisa interessante, não sente pudor em virar a cabeça para olhar.” Sábias palavras. Dez minutos depois, minha cabeça outra vez vagueia sem rumo, os olhos longe da traseira do veículo que roda à frente. Noto arbustos de flores coloridas que crescem à beira da estrada e comento sua beleza com Ana. De novo, ela é implacável: “Você nem deveria ter reparado nas flores”, me adverte, ríspida.
MINHA MULHER TEM RAZÃO: A DESATENÇÃO ESTÁ POR TRÁS DE BOA PARTE DOS ACIDENTES DE TRÂNSITO
confirma Sérgio Costa, consultor do Instituto de Engenharia, de São Paulo. “O motorista considera o ato de dirigir tão básico e mecânico que liga o piloto automático e se distrai com qualquer coisa, dentro ou fora do carro”, diz. As batidas acontecem nos momentos em que se dá prioridade a escolher um CD, espiar a garota do carro ao lado, abrir o pacote de salgadinhos, procurar os óculos escuros no porta- luvas ou atender a uma ligação no celular. “Se você faz várias coisas ao mesmo tempo, seu cérebro não consegue processar todas da maneira devida”, alerta Sérgio Costa.
ESTOU NOVAMENTE 100% FOCADO NA ESTRADA QUANDO, numa fração de segundo, uma picape me fecha para pegar uma saída à direita. Irado, despejo no gravador uma série de xingamentos impublicáveis. Minhas batidas cardíacas levam dez minutos para se normalizar. Nessa hora queria ter um bólido igual ao de James Bond, de preferência equipado com um míssil. A barbeiragem não foi minha, mas tenho a sensação de que reagi de maneira desproporcional. “Alguns motoristas se descontrolam quando se sentem desafiados ou em desvantagem”, continua o consultor Sérgio Costa. Às vezes, chegam a se desviar do caminho para seguir outro carro afim de xingar ou revidar uma fechada. “Ao volante, num passe de mágica, uma pessoa pacata se transfigura em alguém colérico, irascível, e essa característica é mais evidente nos homens”, acrescenta Getúlio Hanashiro, consultor de trânsito e ex-secretário de Transportes do Estado de São Paulo.
“A droga mais perigosa na estrada não é o álcool, mas a testosterona, o hormônio masculino”, confirma Chuck Hurley, do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Em todas as faixas etárias, explica, muito mais homens do que mulheres se machucam e morrem nas ruas e estradas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos acidentes ocorrem por falha humana e nós, homens, somos responsáveis pela maior parte das barbeiragens. Pausa para uma explicação que justifica as estatísticas sinistras que estou prestes a apresentar: nós, do cromossomo Y, passamos em média mais horas na direção do que nossas companheiras. O fato explica, pelo menos em parte, a desproporção entre os sexos tanto no número de envolvidos em acidentes quanto na contagem dos corpos.
Nos Estados Unidos, a cada três óbitos de trânsito, dois são masculinos. Os números disponíveis sobre o Brasil não são atualizados, mas os mais recentes mostram um dado impressionante. A CADA OITO OCORRÊNCIAS (FATAIS OU NÃO), SETE ENVOLVEM HOMENS AO VOLANTE. Em 2003, o Departamento Nacional de Trânsito registrou 378 160 condutores envolvidos em acidentes. Desses, 87,5% eram homens e 12,5% mulheres. Por que será que estamos sempre nos espatifando? As estatísticas mais uma vez não deixam dúvida: a predisposição a pisar fundo no acelerador, fazer manobras arriscadas, dispensar o cinto de segurança e dirigir alcoolizado é muito maior entre homens do que entre mulheres. Em relação à embriaguez, 39% dos homens que perderam a vida em acidentes apresentavam mais do que os 6 decigramas de álcool por litro de sangue permitidos pelo Código Nacional de Trânsito. No rol dos óbitos femininos, o medidor do bafômetro foi bem mais discreto: apenas 18% delas exageraram na birita. Quer saber a quanto os tais 6 decigramas do limite legal correspondem no copo? A cerca de 30 mililitros de bebida, em média. A concentração no sangue depende de fatores como peso corporal e estado de jejum, por exemplo, mas duas latas de cerveja, dois copos de vinho ou uma boa dose de destilado podem ser suficientes para você chegar lá.
MUDE SEU SENSO DE DIREÇÃO |
Sempre que você se dispõe a se tornar um motorista mais consciente, educado e regrado, aquele palpiteiro que mora no fundo do seu cérebro desafia você a faze alguma estupidez Mande-o calar a boca seguindo as dicas testadas pelo psicólogo Leon James, especializado em trânsito da Universidade do Havaí (EUA). |
ENCONTRE UMA MOTIVAÇÃO SINCERA PARA MUDAR. Sem essa determinação, a primeira besta que tirar você do sério vai fazer suas melhores intenções voarem pela janela. Se tem . lhos, saiba que a educação vem do berço até quando o assunto é direção. Jovens que desconsideram noções de segurança têm seu comportamento atreladoao exemplo vindo dos pais. |
FAÇA UM CONTRATO VERBAL COM SUA MULHER ou namorada concedendo a ela a liberdade para dizer qualquer coisa que a preocupe em relação à forma como você dirige. Relaxe e fique preparado com antecedência para ouvir uma crítica construtiva, sem ficar na defensiva. Assim contará com o benefício de ter um observador atento ao seu comportamento no volante. |
PRATIQUE A TÉCNICA DO MOTORISTA DE OLHO EM SI MESMO. Saia de casa com um gravador e registre seus pensamentos e sensações ao volante. Alunos do professor Leon James que . zeram a experiência descobriram sua tendência a atribuir uma característica de personalidade humana aos diferentes veículos: Audis e Mercedes são “folgados”, fuscas “batalhadores” e picapes “boyzinhos”. |
“Um carro esportivo à frente imediatamente desperta em nós o desejo de competição. O que fazemos? Aceleramos para ultrapassá-lo e, assim, nos sentimos melhor durante cinco segundos.”
APARENTEMENTE, AUTOMÓVEIS TRAZEM À TONA O IMBECIL QUE TODO HOMEM TEM DENTRO DE SI.
Os cientistas não sabem explicar bem o porquê, mas Dwight Hennessy, pesquisador comportamental e professor de psicologia nos Estados Unidos, suspeita que a razão está em nossa percepção distorcida da estrada como uma selva de asfalto, em que devemos assumir um comportamento primitivo, animalesco. É como se liberássemos o predador que habita em cada um de nós – de preferência, antes que outro motorista o faça, lógico. “Ver um carro esportivo à sua frente imediatamente desperta em você o desejo de competição. O que você faz então? Mete o pé no acelerador para ultrapassá-lo e, assim, se sente melhor por cinco segundos. Ou seja, até avistar o próximo desa’ ante”, elucida Hennessy.
HOLLYWOOD TEM SUA COTA DE RESPONSABILIDADE NESSE DRAMA.
Quando estreou nos cinemas americanos 2 Fast 2 Furious (Mais Velozes, Mais Furiosos, no Brasil), com o ator Paul Walker, o estado do Texas foi obrigado a aumentar o contingente de policiais rodoviários em serviço durante o período em que o ‘ lme esteve em cartaz. Na Califórnia, seis homens foram presos por dirigir a quase 200 quilômetros por hora logo depois de assistir à aventura, em que os protagonistas aceleram ao máximo, derrapam, batem e quebram a cara (literalmente) em seus bólidos. Claro que nenhum ‘ lme tem poder para dar liberdade à fera interior se ela não for preexistente. “Tem de haver já uma queda para o temperamento agressivo ou o prazer de desfrutar da descarga de adrenalina em situações de risco. Daí, assistir a um ‘ lme ou corrida de Fórmula 1 apenas detona a bomba interna”, explica Roberto Manzini, psicólogo e diretor do Centro de Pilotagem Roberto Manzini by Renault, especializado em direção defensiva e formação de pilotos, em São Paulo.
“O CARA FOMINHA, QUE JOGA O CARRO EM CIMA DOS OUTROS, É O MESMO QUE COSPE NO CHÃO, atira lata de refrigerante pela janela e quer levar vantagem em tudo”, ressalta Roberto Manzini. Se guiar movido a testosterona é perigoso por si só, na hora do rush isso se revela praticamente um ímpeto suicida. O número de homens envolvidos em acidentes fatais ao voltar para casa é quase o dobro do de mulheres, segundo dados da Administração Nacional de Segurança no Tráfego das Estradas dos EUA. “Ao voltar do trabalho com a cabeça quente, o homem desconta a raiva e a frustração até nos pedestres. Nesse período do dia acontecem muitos atropelamentos”, afirma o consultor Getúlio Hanashiro.
Pela manhã, o caminho para o trabalho também não é mais seguro. Numa pesquisa, o psicólogo americano Dwight Hennessy descobriu que homens que dirigiam estressados se mostraram mais sujeitos a comportamentos agressivos no serviço. “Não que eles chegassem e fossem logo esmurrando alguém”, ressalta Hennessy. “No entanto, sutilmente cometeram atos de agressão: sabotaram um colega, fizeram fofocas ou não responderam às ligações de propósito.” As mulheres estressadas não revelaram a tendência. Chegamos inteiros, a tempo de buscar nossos cachorros, Bob e Biscoito. Paramos num semáforo ao lado de um carro com um enorme rottweiler quase saindo pela janela. Com Bob, Biscoito e o mastim latindo enlouquecidos, foi impossível não estabelecer um paralelo. Faço no gravador o último registro do dia: “Estou decidido a, da próxima vez que perceber que meu cérebro de cachorro assumiu o volante, encostar até que retorne a porção humana”.
DESACELERE, PISE NO FREIO |
Quer chegar a seu destino menos irritado? Siga a sinalização do psicólogo Roberto Manzini, diretor do Centro de Pilotagem Roberto Manzini by Renault. |
OTIMIZE O TEMPO. Programe trajetos com antecedência e calcule horários com folga. Assim você evita o desgaste provocado pela sensação de estar perdido ou atrasado. Na internet, diversos sites oferecem descrições de itinerários e informações em tempo real sobre as condições do tráfego nas rodovias. No rádio, as emissoras apontam áreas de engarrafamento para você escolher um caminho alternativo. |
EQUIPE O CARRO. Se puder, instale direção hidráulica e ar condicionado. A direção facilita as manobras, enquanto a refrigeração permite se isolar da selvageria exterior, aliviando o desconforto provocado por calor, fumaça e assédio de pedintes e vendedores ambulantes (tudo isso contribui para seu descontrole emocional). |
LIGUE O RÁDIO. Ou o CD player: música relaxa e preenche o tempo. Não precisa ser óperaou new age: vale rock pesado, eletrônica, funk, pagode, o gênero que preferir. Quando começarem as notícias sobre os aumentos dos salários de deputados, diminua o volume. |
SIMPLESMENTE RESPIRE. Engarrafou? Enquanto os carros não andam, faça um exercício de respiração profunda. Inspire lentamente, levando o ar até o abdome, e solte pela boca bem devagar. Repita várias vezes. |
SEJA ZEN. Não precisa se converter ao budismo nem ler os livros do Dalai Lama: apenas cultive a tolerância e seja mais condescendente com as besteiras dos outros motoristas. Evite revidar fechadas e xingamentos e praticar a lei do olho por olho, dente por dente. |
DEIXE O EGO EM CASA. Suas frustrações, a raiva do chefe ou a briga com a namorada não devem ser sua bagagem. Se B zer uma barbeiragem, seja gentil e peça desculpas. De cara, você freia o ímpeto agressivo do outro motorista. |
NÃO DIRIJA FORÇADO. Estresse, mau humor, insegurança e medo aumentam o risco de você se envolver em acidentes. Se em determinado dia não estiver a B m de pegar o carro, vá de táxi, ônibus, a pé. |